Resumo

A última década assistiu ao aparecimento e crescimento global de plataformas de streaming na indústria da música, como o Spotify e o Deezer. Estas plataformas transformaram inicialmente o consumo cultural na música e também na indústria cinematográfica. Desta forma, Algo_Ritmos é resultado de uma investigação desenvolvida, pelo InternetLab, com o apoio do Fundo de equidade do conhecimento da Fundação Wikimedia, para identificar eventuais viéses e discriminações que podem ser reforçadas ou produzidas nesses contextos, bem como refletir sobre os impactos da globalização destas plataformas e, consequentemente, da normalização nos usos e consumo da cultura mediados por tecnologias. 

Neste projeto, o nosso objetivo é colocar em diálogo a relação entre cultura, recomendações algoritmicas e operacionalizações de desigualdades estruturais em plataformas de música.  Desse modo, a partir de uma perspectiva interseccional, analisamos os dados coletados nestas plataformas para compreender como as dimensões de gênero, raça, etnia, sexualidade e território atravessam os sistemas de recomendação automatizados, a produção de gostos e, consequentemente, o consumo e produção de música.

Metodologia

Partindo dessa curiosidade sobre as relações entre sistemas de recomendação, produção de gosto e marcadores sociais, estabelecemos as seguintes perguntas de pesquisa: 

  1. O algoritmo de recomendação do Spotify e do Deezer recomenda músicas diferentemente dependendo do gênero de quem está ouvindo?; 
  2. O Spotify tende a indicar com mais frequência artistas de algum gênero (homens/mulheres/não-bináries) em suas recomendações?; 
  3. Quando iniciamos a escuta por um gênero de música específico, esse gênero irá influenciar o modo como o algoritmo de recomendações nos fará indicações? Por exemplo, se começo ouvindo Funk ou MPB, essa escolha irá influenciar a decisão do algoritmo?

Inicialmente, foi estabelecido como metodologia da pesquisa o recolhimento de dados de 5 gêneros musicais comumente ouvidos no Brasil: Rap; Gospel; Música Popular Brasileira (MPB); Sertanejo; Funk. Posteriormente, foi incluída a ideia de realizar a mesma coleta para os cinco artistas mais ouvidos em ambas as plataformas. Como o sertanejo estava presente neste Top 5, para evitar o inflamento de comparações apenas a partir do Sertanejo, considerando, inclusive, que este é um ritmo musical em que há uma baixa presença de pessoas negras e um número consideravelmente maior de homens, modificamos a proposta metodológica para quatro gêneros musicais, Rap, Gospel, MPB e Funk, mais as/os artistas presentes no Top 5.

Para cada gênero musical, selecionamos 2 artistas (um homem e uma mulher) com números de seguidores/ouvintes próximos, que entendemos como representativos do gênero musical, para analisar os resultados.

O passo seguinte foi definir os perfis automatizados que realizariam estas coletas – ou seja, “bots” que simulavam perfis de usuários em cada um desses serviços de streaming. Foram criados 6 bots para a coleta de cada artista no Spotify e no Deezer: 2 bots masculinos; 2 bots femininos; 2 bots não-binários, somando um total de 78 bots. As coletas ocorreram semanalmente, por meio de técnicas de automatização de browsers e raspagem de dados.

O que nós encontramos?

  • Quando olhamos para as diferenças de gênero, nas duas plataformas, vemos que a probabilidade de um artista masculino ser recomendado é maior, independente do gênero do usuário, do gênero do artista original e do gênero musical. É importante dizer que esse tema tem sua complexidade, visto que nem sempre é possível aferir que a responsabilidade é apenas da plataforma. Como veremos no decorrer da pesquisa, alguns gêneros, como é o caso do Sertanejo, são marcados por baixa presença de mulheres e de pessoas negras, isso significa que o algoritmo de recomendação pode estar apenas reproduzindo o que ocorre em relação ao mercado que caracteriza esse gênero musical;
  • Na reprodução em sequência, observamos que as plataformas oferecem com mais frequência músicas em que artistas de gênero masculino são mais comumente ouvidos. Nas sequências observadas, a maior sequência ocorreu no Spotify na playlist Mc Poze com 45 músicas de artistas masculinos consecutivamente tocadas, ou seja, não houve ocorrência de nenhuma mulher aparecendo durante 45 músicas. No caso das artistas feministas, a maior sequência de músicas ocorreu no Spotify e na playlist Adriana Calcanhotto. Ocorreu uma sequência de 17 recomendações de artistas femininas. Logo, a maior sequência feminina é menor que a metade do tamanho da maior sequência masculina;
  • No Spotify, das treze playlists coletadas (uma para cada artista), apenas uma recomendou artistas trans e ou não-bináries. No Deezer esse número subiu para três playlists;
  • Não é possível mensurar comparações entre frequência de artistas brancas(os) e não brancas(os), o que não nos permitiu trazer a perspectiva étnico-racial para a pesquisa realizada. Ainda que haja cautela em recomendar que plataformas como essas retenham mais dados das pessoas que utilizam seus serviços, acreditamos que esse tipo de dado é fundamental para melhor compreender as dinâmicas em que desigualdades se sustentam quando se tratam do mercado de música no Brasil.

Algumas considerações

A falta de representatividade das mulheres nas recomendações do Deezer e do Spotify destaca a necessidade de uma análise mais aprofundada sobre como as plataformas de música podem contribuir para desequilíbrios em relação a grupos marginalizados. Essas desigualdades não se limitam apenas a falhas nas plataformas, mas também chamam a atenção para a responsabilidade social de buscar equidade na indústria musical. A disponibilização de dados de forma menos opaca para pesquisadores e o acesso a informações sobre raça, etnia e outros marcadores sociais são cruciais para entender e enfrentar esses desafios. Além disso, é essencial investigar a influência das plataformas de streaming de música na formação de preferências musicais e na interação com os usuários. A música desempenha um papel importante na identidade cultural e profissional dos artistas, e é necessário explorar como as plataformas podem impactar essas dinâmicas. Questões sobre acesso a dados, privacidade, viés algorítmico e comparações entre regiões globais também devem ser abordadas. Um diálogo entre formuladores de políticas, plataformas de música, sociedade civil e artistas pode ajudar a encontrar soluções e promover mudanças significativas na indústria da música.