Algumas considerações

A falta de representatividade das mulheres nas recomendações tanto do Deezer quanto do Spotify evidencia a necessidade de uma análise mais aprofundada sobre como as plataformas de música podem contribuir para desequilíbrios em relação a grupos historicamente marginalizados. Embora ambos os serviços tenham sido mencionados aqui apenas como exemplos do que pode ser observado ao analisar esse tipo de consumo, como mencionado anteriormente, os problemas relacionados a essas desigualdades não se limitam apenas a falhas ou vieses presentes nas plataformas de música, mas chamam atenção para a responsabilidade social de que esses serviços contribuam para a busca da equidade na indústria musical. 

Ao longo da pesquisa, além de notarmos a escassa representação de mulheres, pessoas não-binárias e travestis nas recomendações musicais, também nos deparamos com incertezas sobre se estávamos diante de um sistema totalmente automatizado ou se as playlists, por exemplo, haviam sido curadas mais diretamente por pessoas que trabalham no Spotify ou no Deezer. A falta desse conhecimento ressalta mais uma vez a importância de disponibilizar os dados reduzindo a opacidade de informações para pesquisadoras e pesquisadores. O acesso a esses dados seria benéfico não apenas para o diálogo com formuladores de políticas, mas também com a sociedade civil e com as próprias plataformas de música. 

Além disso, a falta de dados sobre pessoas negras e não-brancas em geral agrava a falta de transparência das plataformas. Não ter acesso à forma como as pessoas se autoidentificam, seja como usuárias ou artistas, impede-nos de identificar se as plataformas de streaming refletem as desigualdades que observamos fora delas. De acordo com uma pesquisa realizada pelo jornalista Léo Feijó, “em 62,5% das organizações analisadas, menos de 5% dos cargos executivos são ocupados por pessoas negras. Além disso, em mais de 46% das organizações da indústria musical brasileira, a presença de negros varia de 0% a 15% em relação ao total de funcionários. Quanto aos cargos no quadro total de funcionários, apenas 26,5% são ocupados por negros.”1 Com a ausência desses dados, como podemos saber se o cenário nas plataformas de streaming se assemelha ou difere dessas estatísticas?

Ainda que parte dos debates sobre regulação de plataformas, inteligência artificial, discursos de ódio e os cuidados com privacidade tenham se concentrado em outros aspectos de possíveis impactos negativos na sociedade, em geral, e em grupos marginalizados, em particular, acreditamos ser importante focar também na influência na formação de gostos e na interrelação entre streamings de música e usuárias(os), o que pode se conectar com direitos autorais, mas em alguma medida transbordá-los, visto que a própria discussão sobre propriedade intelectual não é tangível por parte significativa de músicos e da sociedade em geral2.

A música é concebida como parte considerável na formação e identificação de povos, mas também tem relação direta com o modo como artistas e outros profissionais da música se colocam nesse cenário. Por essa razão, são imprescindíveis mais pesquisas que busquem olhar para:

  1. Quais outros dados, além de raça e etnia, necessitamos ter acesso? Como conciliar o acesso a esses dados com o cuidado em relação à privacidade de usuárias e usuários?
  2. Quais outros marcadores sociais da diferença são operacionalizados e esbarram com viéses algorítmicos? Sexualidade, territorialidade e nacionalidade podem ser alguns deles?
  3. Quais comparações podem ser traçadas entre o Norte e o Sul Global? Há diferenças significativas no que diz respeito ao acesso a dados e aos viéses encontrados?
  4. Quais poderiam ser as saídas encontradas em um diálogo construído entre formuladores de políticas, plataformas de música e sociedade civil?
  5. Qual o espaço que artistas, profissionais da música e usuários(as) podem ter em futuros desenvolvimentos e aprimoramentos de aplicativos de música?