Dados encontrados

Após a coleta e análise dos dados, encontramos resultados que corroboram o que a pesquisa desenvolvida por Ferraro, Serra e Bauer identificou. A partir do uso de dois bancos de dados públicos  que contém informações de comportamentos de usuárias(os) que utilizam streamings de música, os autores buscaram entender como ocorria a abordagem de gênero por plataformas de streaming.  Os resultados sugeriram que há uma diferença significativa na quantidade de artistas mulheres e homens sendo recomendados, no geral, as pessoas tinham que esperar seis faixas serem tocadas até ouvir a faixa de uma mulher. Abaixo, em diálogo com a pesquisa desenvolvida por Ferraro, Serra e Bauer1, demonstramos quais foram as principais diferenças observadas quando olhamos especificamente para o consumo de música no Brasil e de artistas brasileiras(os).

As diferenças de gênero

As recomendações de artistas identificados com o gênero masculino são maioria, mesmo quando observadas por diferentes ângulos. Vejamos:

i. Quando se olha para o total geral de recomendações:

Nas duas plataformas (Deezer e Spotify) o percentual de artistas masculinos recomendados foi superior a 50%. No total geral das recomendações do Spotify, o gênero masculino ocupa 55,76%, o feminino 24,01% e os gêneros diversos (grupos ou feat que possuem pessoas de diferentes gêneros) 19,25%. No total geral de recomendações do Deezer 58,39% foram do gênero masculino, 19.76% feminino e 21,38% diversos.

ii. O total considerando a lista de artistas presentes no Top 5 de ambas as plataformas, bem como aqueles escolhidos aleatoriamente pelas pesquisadoras, denominados aqui como Not Top 5, foi:

Ao olharmos apenas para o Top5, a porcentagem de artistas masculinos recomendados aumenta. No Top5 do Spotify 65,41% das recomendações foram de artistas do gênero masculino, 15,70% do gênero feminino e 17,47% de diversos. No Deezer a porcentagem de recomendações de artistas do gênero masculino sobe para 73,23%, do gênero feminino caem para 12,90% e de diversos 13,87%.

As recomendações do Not Top5 mantêm números mais próximos do geral. Nesta categoria, no Spotify o gênero masculino ocupa 49,74%, o feminino 29,21% e diversos 20,37%. No Deezer o gênero masculino aparece com 49,11% das recomendações, o feminino 24,96% e diversos 26,08%.

iii) As playlists individuais 

Quando olhamos as playlists por artistas, podemos observar que no Top5 a playlist da Marília Mendonça2 no Spotify foi a única que não teve maioria de recomendações de artistas do gênero masculino. 

Ao observarmos as playlists de artistas do grupo Not-Top5, notamos maioria de recomendação de artistas femininas nas playlists de Aline Barros, Adriana Calcanhotto e Drik Barbosa, no Spotify, e Drik Barbosa e Rico Dalasam no Deezer.

iv. Análise por meio de bots

A ampla recomendação de artistas do gênero masculino continua independente do gênero da pessoa usuária, ou, melhor dizendo, do gênero atribuído ao Bot. 

No Spotify, as recomendações para o Bot feminino foram: 55,65% de artistas masculinos, 24,1% femininos, 19,27% de diversos; para o Bot masculino as recomendaram foram: 54,85% de artistas masculinos, 23,88% femininos, 20,31% de diversos; para o Bot Não-Binárie as recomendações foram: 56,79% de masculinos, 24,1% de femininos e 18,18% de diversos. 

No Deezer as recomendações de artistas masculinos surgem ainda mais altas. Para o Bot feminino foram: 58,15% de artistas masculinos, 20,8% femininos, 21,33% de diversos; para o Bot masculino as recomendaram foram: 58,53% de artistas masculinos, 19,42% femininos, 21,53% de diversos; para o Bot Não-Binárie as recomendações foram: 58,49% de masculinos, 19,79% de femininos e 21,29% de diversos.

v. As similaridades entre turnos

Observamos que independente do turno que a rádio é ouvida a alta porcentagem de recomendação de artistas do gênero masculino se mantém. No Spotify, no turno da manhã, foram recomendados 55,75% de artistas masculinos, 24,37% femininos e 18,97% diversos. Na mesma plataforma à noite foram recomendados 55,78% de artistas masculinos, 23,66% femininos e 19,53% diversos. No Deezer, no turno da manhã, foram recomendados 57,96% de artistas masculinos, 20,61% femininos e 21,03% diversos. Na mesma plataforma à noite foram recomendados 58,82% de artistas masculinos, 18,92% femininos e 21,74% diversos.

vi. A presença de artistas mulheres nos feats

A presença de artistas femininas solo nas recomendações ocorreu aproximadamente o mesmo número de vezes do que em feats, bandas, grupos, etc. Em algumas playlists, a participação de artistas femininas em feats foi maior do que artistas femininas solo:

  • Deezer: Barões da Pisadinha, Eli Soares, Jorge e Mateus, Mc Dricka, Mc Poze.
  • Spotify: Barões da Pisadinha, Eli Soares, Gilberto Gil, Gustavo Lima, Henrique e Juliano, Jorge e Mateus, Mc Dricka, Mc Poze.

A presença de artistas masculinos solo nas recomendações ocorreu quase o triplo de vezes do que em feats, bandas, grupos, etc.  Esse desequilíbrio pode indicar que homens em carreira solo parecem ter mais destaque ou mais facilidade de recomendados pelos algoritmos, do que mulheres em carreira solo, dialogando com outras pesquisas em que se argumenta que  homens músicos tendem a ter mais sucesso em suas carreiras do que mulheres3.

vii. As sequências de artistas de mesmo gênero

Top5 e Not-Top5: em ambas as plataformas ocorreram longas sequências de músicas de artistas do gênero masculino. O Spotify apresentou as maiores sequências apresentando continuamente artistas masculinos e femininos. 

No Top 5, a maior sequência ocorreu no Spotify na playlist Jorge e Mateus com 31 músicas de artistas masculinos consecutivamente tocadas.

No Not-Top 5, a maior sequência ocorreu também no Spotify na playlist Mc Poze com 45 músicas de artistas masculinos consecutivamente tocadas, ou seja, não houve ocorrência de nenhuma mulher aparecendo durante 45 músicas.

No Top5, a maior sequência de músicas de artistas do gênero feminino ocorreu no Spotify e na playlist Marília Mendonça. Foi uma sequência de 8 artistas femininas.

No Not-Top5, a maior sequência de músicas de artistas do gênero feminino ocorreu no Spotify e na playlist Adriana Calcanhotto. Ocorreu uma sequência de 17 recomendações de artistas femininas. Logo, a maior sequência feminina é menor que a metade do tamanho da maior sequência masculina.

viii. A probabilidade de transição de um gênero para outro

Dentro do que coletado, a probabilidade média de recomendações por gênero de artista no Top 5:

Top 5 – Spotify

M66,36%
D17,71%
F15,93%

Top 5 – Deezer

M73,23%
D13,87%
F15,93%

A probabilidade média de transição para o Top 5 foi:

Top 5 – Spotify

M → M46,88%
D → M10,93%
M → D10,78%

Top 5 – Deezer

M → M53,16%
D → M10,39%
M → D10,31%

Dentro do que coletado, a probabilidade média de recomendações por gênero de artista no Not-Top 5:

Top 5 – Spotify

M49,74%
F29,21%
D20,37%

Top 5 – Deezer

M48,96%
F24,14%
D26,15%

A probabilidade média de transição para o Not-Top 5 foi:

Top 5 – Spotify

M → M31,41%
D → M12,70%
F → M ou M → F9,55%

Top 5 – Deezer

M → M27,13%
D → M12,53%
M → D12,31%

A ideia aqui não é se prender apenas aos valores, mas mostrar que, em ambas as plataformas, a probabilidade de um artista masculino ser recomendado é maior tanto isoladamente quanto em sequência, ou seja, a probabilidade de se recomendar um artista masculino é maior e a probabilidade do artista seguinte na recomendação também ser do gênero masculino também é maior. Esta interpretação reflete as longas sequências de recomendação de músicas de artistas masculinos recomendados.

Aqui, cabe uma consideração importante! Como mencionado acima, nem tudo pode ser colocado como culpa ou responsabilidade das plataformas de streaming. Há uma marcante desigualdade de gênero na indústria da música, que varia entre os estilos musicais, que não foi criada pelas plataformas de streaming e não será superada por apenas um ajuste algorítmico4. Entretanto, vemos que essa desigualdade é reforçada e perpetuada pela forma como os algoritmos têm feito suas recomendações em ambas as plataformas aqui estudadas – que poderiam atuar no sentido oposto, justamente buscando aumentar a visibilidade de artistas mulheres e não bináries. Vale destacar também a baixíssima presença de artistas não-bináries nos dados destacados.

As diferenças entre identidades de gênero

Na coleta realizada, artistas travestis e não bináries foram recomendadas apenas nas playlists de Adriana Calcanhotto, Drik Barbosa e Rico Dalasam. Artistas travestis foram recomendadas apenas na playlist Rico Dalasam e no Spotify.

Spotify
Spotify
Deezer
Deezer
Notas
  • 1

    Andres Ferraro, Xavier Serra, and Christine Bauer. 2021. Break the Loop: Gender Imbalance in Music Recommenders. In Proceedings of the 2021 Conference on Human Information Interaction and Retrieval (CHIIR ’21). Association for Computing Machinery, New York, NY, USA, 249–254. https://doi.org/10.1145/3406522.3446033

  • 2

    Falecida em 05 de novembro de 2021, Mendonça deixou um legado importante para a feminização do Sertanejo. Para saber mais sobre a última entrevista concedida pela cantora à Revista Marie Claire, acesse: https://revistamarieclaire.globo.com/Celebridades/noticia/2021/11/para-marilia-mendonca-o-sertanejo-precisava-falar-com-mulheres.html

  • 3

    “‘Who Run the Music? Girls!’ Examining the Construction of Female Digital Musicians’ Online Presence,” Popular Music and Society, 1–14, http://dx.doi.org/10.1080/03007766.2016.1174419.

  • 4

    Eriksson, Maria & Anna Johansson: “Tracking Gendered Streams”, Culture Un-bound, Volume 9, issue 2, 2017: 163–183. Published by Linköping University Electronic Press.